segunda-feira, 12 de julho de 2010

aquela atriz

encontramo-nos na esquina da solidão, onde se cruzam duas movimentadas avenidas, repletas de edifícios cor-de-cinza, restaurantes requintados, lojas de luxo e canteiros de obra. beirando o café de nome italiano e o bar da amargura, onde se chora à vontade após cinco ou seis doses de uísque, estava ela, prostrada num canto onde o vento certamente chegava sem parcimônia. era inverno, o que se notava pela palidez dos muitos passantes por ali, apressados e destemidos, e pela frieza dos apáticos sorrisos que circundavam aquela inóspita região. vestida como de costume, em tons escuros, na imponência de sua elegância, usava um chapéu negro que de longe se notava, cujas abas escondiam metade de seu rosto redondo, a par de quem veste uma carapuça ao anonimato. tragava um cigarro com delicadeza, como se calculasse cada movimento de sua mão, num vai-e-vem que me excitava por mera displicência. era aquela mulher de anos atrás, que me fez partir taciturno após muito penar. era a atriz, a que fazia cinema e me fazia suspirar com um só sorriso. era falante, graciosa, inteligente e, portanto, fingida e astuciosa. sabia que me envolvia em cada palavra, sempre tocando o meu ponto fraco como quem domina um piano com mestria. sabia por onde ir até me despir, sem muito esforço, gozando da habilidade que comumente ostentava diante do sexo oposto. parei alguns minutos antes de abordá-la, recordando-me de como a conheci, rememorando até o dia do mês em que avistei aquela rosa galante pela primeira vez. sem dominar as pernas e os movimentos, o meu corpo guiou-me em sua direção, arrastado pelo instinto, que não era paixão e nem amor, mas puro desejo. é certo que me aguardava, centrada no discurso infalível que proferiria. tanto que, ao aproximar-me, armou-se toda em feminilidade e girou vagarosamente o corpo, de modo a ficarmos a um palmo de distância. abraçou-me fortemente em silêncio e não olhou nos meus olhos. ignorando o acaso daquele encontro, convidou-me para acompanhá-la num passeio às margens do rio da eternidade, desenhando uma naturalidade espantosa, feito a cumplicidade repentina dos fumantes. ofereceu-me o braço esquerdo e pôs-se a andar enquanto narrava o seu cotidiano cheio de sonhos e imperativos. precisava desabafar, desanuviar o seu lirismo que nunca achava onde desaguar senão nos meus sentidos. portava-se com segurança, como se no palco estivesse, não se deixando fraquejar em cada oração. exalava independência, cumpria o seu papel de mulher inatingível. falava, falava, falava e não me deixava muito espaço para também o fazer. era um solilóquio belo, intrigante, fajuto. era o que eu queria ouvir, era a medida certa de um resgate de predileção, a fisgada certeira do meu coração, que de tão vagabundo, acordava sempre só e se deixava levar. ainda mais com aquela mulher, para mim tão bela, que me soava diferente, que me cegava debilmente a cada raro encontro. era do tipo que sentia a necessidade de conquista, de atração, de domínio, na frieza de ver a caça se debatendo até a morte. era uma boa jogadora, insaciável, que se testava a todo instante. desde o princípio, perdi-me em admiração no modo como se movimentava, de como gesticulava e articulava os sorrisos em bonita simetria com os olhos. gostava do seu ar de independência, da altivez que inspirava ao falar de si e do mundo a que aspirava. era incrivelmente feminina no modo de se vestir, o que me atraía e me fazia contemplá-la pacientemente. tinha senso de humor e inteligência em medidas geniosas, fazia-me descobrir suas fraquezas, sua fragilidade, sua vontade quase infantil de ser menos racional. deixava-se revelar, abrindo as portas do passado e escancarando os muitos vãos que ali habitavam, naquele coração dividido entre as frivolidades do orgulho e a vontade de ser menos imponente. guardava em si algo além da beleza sem o saber. e eu me tornava indefeso diante daquela mulher, desarmava-me de qualquer desconfiança e a ela me entregava, inteiro, sem medo. naquele dia, mais uma vez acreditei em suas palavras, que me chegavam como promessas de um futuro feliz e cheio de amor, da confiança de mãos dadas e dos 'bom dia' ditos sem custo. alimentou-me essa ingênua esperança que em mim imperava diante das mulheres, esse desejo de repousar tranquilo no seu colo e dizer coisas bonitas porque sentidas, essa pueril felicidade de amar e ser amado. despediu-se com zelo, fazendo juras de um amanhã menos inconstante. e realmente cumpriu, levando-me adiante, aparecendo-me nos dias seguintes com aquele cheiro envolvente: café, alecrim, lavanda e poesia. a fragrância que o vento, aquele que nela sempre chegava com violência, costumava levar para longe. o que o tempo mostrou-me novamente, que não haveria de ser minha aquela mulher. durou pouco aquela fração de contato. ela era afeto de veraneios, com sua devida intensidade; era estação passageira de frio e calor em conflito; era a personagem principal de alguns dos meus bonitos filmes. e feita pra se ir, deixou-me outra vez, esvaziando-se em lembranças que agora perdem, pouco a pouco, o seu encantamento.

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