sexta-feira, 12 de março de 2010

sussurro sem som

hoje, no que dizem os médicos ser o teu último dia de vida, apetece-me dizer-te pequenas coisas que cá ficaram embrulhadas, embaladas em pele, guardadas em meu pranto ao longo desses anos de saudade e solidão. fazes-me sentir muito mais sóbrio agora ao teu lado novamente, ainda que neste lúgubre leito de unidade de terapia intensiva. apercebo-me só neste instante que me preparaste a adentrar o campo de batalhas com alguma segurança. ensinaste-me a abrir os olhos no escuro e não temer o desconhecido, o não visível. fizeste-me sentir, com o peso da ausência, a dura realidade do abandono, da perda, do desencontro de estações. mostraste-me o quanto eu tinha de aprender para sentir um pouco de liberdade, experimentar da leveza de espírito que tanto reclamavas a ti. só agora aqui, agarrado às tuas mãos, com afinco e fé, com amor e menos receio, me alumia a dor que traduz esta despedida. compreendo-te em cada segundo que se passou. porque deles não existiu um sequer em que meu pensamento tenha fugido de ti. e mesmo nas tuas últimas horas de vida, vejo que consegues desenhar em tua face um quê de prosperidade, essa plenitude que sempre alcançaste sem esforço. és maravilhosa, és demasiado bonita. a tua beleza é sem pressa, é dona de si, é sem vaidade. jamais admirei tanto alguma outra mulher. nunca esquecerei daquele mês de março em que nos cruzamos naquela encantadora exposição literária do guimarães rosa. indaguei-te ligeiramente pra onde nos atrai o azul? e respondeste-me com um sorriso faceiro que felicidade se acha em horinhas de descuido. estava feito. não demorou para descobrirmos o tanto de tanto que haveríamos de dialogar, de viver, de experimentar. apresentaste-me um mundo novo, colorido e furtivo, tal qual tela de aquarela, como as gravuras de frida kahlo por nós tanto seduzidas. descobri em ti a intensidade do prazer de gostar de alguém sem exigências. e me envolveste de olhos fechados. recordo-me bem que gostavas de dançar ao ritmo cubano que tocava aos domingos na gafieira da esquina treze, aqueles infindáveis alvoroços de gente a gargalhar, a se roçar no calor da felicidade eufórica de momento, em que eu me equilibrava em corda bamba, sem olhar para baixo a nortear a altura a que me elevavas em perigo. apaixonava-te por ti mais e mais. eras sangue pulsando na desventura dos dias, vagueando sorrateiro dentro em mim. sorrias bastante, sorrias para o mundo, para qualquer coisa que passasse lá fora, para as crianças no batente da calçada, para as idas e vindas do oxigênio que te bombeava ofegante os pulmões naqueles dias de forte sol que tanto te agradavam. de mãos dadas saíamos a passear, abraçávamo-nos sob a brisa do mar e bronzeávamos nossos corpos sem com nada se preocupar. outras vezes íamos ao cinema, dividíamos a pipoca, os chocolates e os risos. criavas o cenário a detalhes que te custavam até lágrimas fora de hora, não te importavas com o tempo gasto, nem com o excesso das faltas que eu marcava pacientemente no calendário. era teu para ti, somente a ti. e tu nunca foste minha, nunca foste de ninguém. foste sim a criatura mais livre que me existiu. e nunca sofri tanto quando me deixaste sem sequer uma palavra de adeus. deixaste-me somente as palavras doces como herança, de teu sutil encantamento, da delicadeza perdida que aflorava nas horas vagas. escrevi-te longas cartas, já depois de alguns outonos, que sequer saíram da escrivaninha, amarrotaram-se nas gavetas que já se tornavam insuficientes e cheias demais. até que um dia nelas ateei fogo e pôs-se abaixo todo aquele castelo de palavras órfãs. o calor consumiu as minhas tenras declarações, meus pedidos de desculpas, meus pequenos e raros arrependimentos, minhas faltas de razão. não sabia pra que lado havias ido. e fiquei apenas com a lembrança do dia anterior, tu vestida de verde, olhar distante, beijaste-me a testa e te foste, engarrafando-se num comboio pras bandas de lá. de lá de onde não mais voltaste nos dias que se seguiram, de lá de onde te esquivaste à bússola do meu coração. foste ríspida porque nada me disseste naquela tarde que te foste, sem deixar vestígio algum, senão as marcas de desespero que logo lograram-se a uma desvairada insanidade em mim. e doze anos depois apareces de volta, já assim quase sem vida, feito mar sem ondas, feito luz difusa num túnel sem fim. surpreendo-me por não guardar sequer um fio de rancor, uma falha ira, uma mágoa pungente. neste presente já brando, faço-me teu outra vez. não mais me comovendo com o que pode ter sido perdido. se perdemos algo, já se foi. ensinaste-me que as perdas são encontros do outro lado, que vêm de nós mesmos, das escolhas, das vontades que seguimos. e foi com a tua falta de comparência que ergui o norte acerca de tudo o que circunda os labirintos da vida. perdi-te e reencotrei-te. agora tenho a certeza de que sempre estivemos juntos e de que é preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado. descansa em paz, meu amor, minha mulher.

Um comentário:

  1. me dei conta a pouco que comentários agora são permitidos por aqui... melhor dizendo, burburinhos!

    o hiato passou... e os sentimentos a flor da pele continuam.... me fazendo sentir em mim as tuas palavras...

    um dos mais fortes textos teus.

    ResponderExcluir