encontrei o sorriso teu no espelho do banheiro, ainda embaçado, cheio de tato, tão cheio de vida. veio-me todo o resto, todo o nosso folhetim de várias páginas, os desenhos abstratos e concretos, os abraços apertados, o todo muito todo em cada detalhe. vi-te deitada aqui, na cama espaçosa, hoje espaçosa. a cama que não era a minha, muitas vezes só tua. o meu desejo, o teu desejo, a vontade indo e vindo. a vontade que ficou. e senti o teu cheiro, aquele mesmo de sempre, do que se eternizava a cada encontro em minhas vestes, em minha pele, e ficava em forma de lembrança, de gostosa lembrança. o teu cheiro, o teu sorriso. de quando não havia graça nas piadas que eu nunca soube contar, da minha ingenuidade, do meu lado quase sempre infantil de te dizer palavras bonitas. daquela mania tola de ter medo, do medo oculto, do que não dizíamos e não confessávamos um ao outro, simplesmente por saber que gostar era não saber que gostávamos. o meu receio era o teu. o receio justamente dele, do gostar. e de saber fazer, e de saber levar. de não querer perder. fugimos tantas vezes, no álcool e na gente toda ao redor; fomos tão sociáveis, tão cheios de empatia, sempre com largos sorrisos. digo sempre disso, dos nossos sorrisos, a nossa constância, a nossa ilusão. foi neles que nos perdemos. eu no teu, tu no meu. nos sorrisos. naquela cotidiana maneira de andar a passos largos, e tão curtos que eram, deixando subentendida a liberdade. a nossa encenação, a falta de confusão, o caso perfeito de quem combina doce e salgado na mesma receita. as tuas receitas, os teus doces, o teu afeto. envolviam-me mais pelo cheiro do que pelo gosto. o cheiro. o teu cheiro. que me faz recordar tanto, tanto. um tanto que não cabe em mim, nem na memória, nem no coração. é na desmemória que te encontro, no esquecimento das datas, na tentativa de esquecer. tentativa. também tive medo de tentar, ou re-tentar inúmeros aspectos. mas não quero agora me lamuriar. logo agora, que tuas texturas coloridas e rodadas, acompanhadas de cheiro, do teu cheiro, me aparecem nítidas. nas buscas, nas idas. eu te observava sorrateiramente, a tua vaidade, os teus olhares de procura. sinto falta. do sorriso, do cheiro. faz-me falta a tua companhia quase sempre distante, com uma carência de rumo que me deixava atento, que me fazia sentir à vontade a qualquer hora. foste, antes de tudo, o meu significado de liberdade. o que nunca consegui definir. e hoje, não sei por que hoje, revi os teus ares de atriz, o nosso caminhar de mil perdões, o nosso samba desfeito. o laço gigante dos tantos presentes, do carinho constante, da atenção que jamais faltou. que faltou somente ao nosso sentimento. e sei que sentimos, muito, bastante. na medida nossa, da nossa forma. no nosso. nesse plural conjunto que mantenho ao falar de tudo. do tudo sobre nós. essa unidade que talvez encontre o sempre, que talvez jamais se apague por completo. esse muito que vai se revelando aos poucos em forma de inspiração, de saudade ou de versos soltos. que sai, enfim, de dentro e se mostra intenso como o amarelo que foi e é o nosso amor. neste agora, naquele ontem. confesso-te que fiz planos, revi antigos conceitos e me vi ao lado teu, só teu, como homem de uma só mulher. és um passado sem arrependimentos, sem muitos porquês. o 'queira ou não-queira'. o que me faz entender um muito pouco do tanto que eu quis compreender. acho que foste muito cedo, te perdeste nas reticências. e, muito embora eu tenha ficado com a oportunidade de um ponto-e-vírgula, foste o motivo de uma racionalidade enfática e temerosa. o receio de sempre, o exercício constante do fazer escolhas. nos despedimos. e vez ou outra aparece o teu cheiro, como quem nada quer. e também o sorriso. aquele sorriso de quando eu sorria em meio aos beijos. aquele sorriso largo e belo. aquele sorriso errado e certo, aquele. tenho muito o que lembrar, mesmo sem querer, mesmo sem saber. sabendo que tens uma certa relevância sobre o que me faz sentir. dessa sensibilidade que descobriste em mim, de te entender como ninguém. como nunca outro alguém. e foste cúmplice dos meus vícios, estimulando-me em tua companhia. os meus muitos vícios. os costumes típicos e atípicos, não reclamaste de nenhum deles. em verdade, dividiste comigo uma parte inteira de uma vida sem nem mesmo percorrer as quatro estações. creio que o bem que me fizeste supera qualquer mágoa porventura desferida, é o que tenho que admitir. e reconheço, à maneira de quem lembra e vai lembrar quantas vezes quiser. do sorriso, do cheiro e da cor hepática e pulsante que colore o envelhecimento das coisas postas.
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