domingo, 22 de novembro de 2009

maria lúcia

maria lúcia é do tipo feminino independente, que se julga superior e obstinada. é daquelas mulheres que se mostram frias e ousadas, mas que se roem por dentro em busca de sentidos para as coisas singelas do cotidiano. cresceu sustentando a filosofia de que "sem macho a vida é mais fácil". verticaliza sempre as relações, embora defenda a horizontalidade das coisas, a igualdade dos sexos. é impositiva, autoritária e egoísta, mas não o admite. não aceita intromissões em seu mundo, veste a capa da solidão e se enclausura em seu minúsculo apartamento de quarto, sala e cozinha. alcança a pequena varanda antes mesmo do sol nascer. se posta de bruços no parapeito, segurando, numa das mãos, uma xícara de café e, noutra, alterna entre um cigarro e um livro do bukoswski, a depender do humor. fica a imaginar o que seus vizinhos sonham em noites quentes, como as que se sucedem com a chegada do verão, querendo também ter sonhos. perambula quase sem roupa, a exibir suas longas pernas de pele branca e a deixar à mostra os seus seios fartos. não suporta o calor. pouco vento e pouco espaço: o bastante pra se sentir inquieta e atiçar sua insônia crônica. beirando os quarenta, maria lúcia fora dominada pelo esquecimento. não tem amigas, não tem família, distanciou-se de todos. possui apenas um gato, o tião, seu fiel companheiro nas tardes de domingo em que se empanturra de biscoitos amanteigados. distrai-se com a tevê, trocando os canais ansiosamente e sem muito interesse. coleciona discos do roberto carlos e fotografias de alguns famosos, das quais algumas ganham espaço na porta do seu guarda-roupas. é viciada em palavras cruzadas e vez ou outra, quando se sente paciente, o que é bastante raro, borda algumas toalhas. sem se dar conta, maria lúcia passou os últimos anos a se isolar em seu universo de desejos reprimidos, alimentando medos e angústias que a mantêm presa ao seu personagem pudico. outro dia, já aflita, com intensos sinais de que iria, finalmente, sucumbir perante as convenções, abandonou a sua rudeza: mordendo a toalha, enxugando o corpo, abafando o riso, masturbou-se por alguns minutos no pequeno banheiro escuro, a fim de sentir algum prazer. no espelho embaçado se entreviu em partes nuas, se achou velha e já sem forças pra mudar o cenário. lembrou-se de sua adolescência, do seu corpo à flor da pele, da época em que não se deixou permitir. sentiu-se estranhamente triste e só. no silêncio cortante que a preenchia, deixou-se adormecer no limiar da porta do quarto. no dia seguinte, embriagou-se até desmaiar. e assim levava sua rotina de destruição. perdera-se há muito, com receio de se machucar. sujeitou-se ao monólogo áspero da vida em singular. desperdiçou etapas, cegou-se no breu da incerteza. e agora vive assim, numa rotina depressiva e penosa. tenho dó da maria lúcia.

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